Aspirei
o perfume da flor. Lembrou-me teus cabelos.
Infinitos
dias iguais. Hoje, sou duas em uma.
O
orgulho do pai era mesmo Robertinho, o Lilico. O caçulinha parecia ser uma
promessa, quase uma tênue esperança para o velho pai. Robertinho, com seis
anos, era o craque da bola, jogava como ninguém! Nenhum dos outros cinco irmãos
conseguia realizar as proezas que o Lilico fazia a cada jogo de futebol.
Lembrava
sempre a alegria e o carinho do pai ao se referir a Lilico, da emoção que havia
na voz cansada ao gritar, à beira do campo: “Vai, Robertinho, lança a bola!!” O
campo no qual jogavam era um terreno baldio e, muitas vezes, durante a partida
ou quando o jogo estava “pegando fogo”, precisavam sair em disparada, porque o
caminhão lá chegava e despejava toneladas de lixo fedorento... Apesar disso, os
jogos continuavam e a plateia animada via desabrochar a cada dia um novo atleta
da bola!
Já
a alma de Robertinho era tão bela quanto seus dribles no campo... Acontecera no
dia em que ganhara algumas balas de um homem vestido de coelhinho, parado em
frente a uma loja de doces. Levara logo as balas para os irmãos, no barraco. Chegou
de mansinho, todo feliz, chamando por todos... O primeiro a aparecer foi o Robertinho...
O tom amorenado da pele, os olhos escuros, brilhantes e o sorriso maroto
encheram seu coração de uma súbita ternura pelo irmãozinho.
-
Que foi, Mano? Por que gritar tão alto?
-
Tome, são pra você. Guarde logo, porque as suas são bem mais. – a mão estendida
mostrava as balas coloridas.
Lilico
alegrou-se, rapidamente agarrou as balas e escondeu-as no bolso do calção.
-
E pros outros, veio também? – a ansiedade no tom de voz de Lilico encheu seu
coração de mais doçura pelo irmão pequeno.
-
Trouxe pra eles sim, não se preocupe!
-
Mas, então, daí as outras balas. Eu levo pros irmãos lá do outro lado da rua.
Eles não ouviram o berro que você deu.
-
Certo. Pegue aqui. – quando colocou as balas na mão dele, foi que lembrou da
mãe.
-
Droga, Lilico! Esqueci por completo da mãe! Não guardei nenhuma pra ela! O pai,
coitado, tá bêbado, encontrei pelo caminho... Mas a mãe...
Robertinho
olhou com pena para as balas. Olhou tristemente para o irmão maior, depois
meteu uma das mãos no bolso do calção e tirou de lá as balas que haviam sido
dadas a ele há poucos minutos atrás.
-
Pegue, Mano! Eu não preciso delas! Uma bala ou nenhuma, que importa! Leve as
minhas pra mãe, ela merece mais, né?
Havia
maturidade naquele gesto de abnegação; havia amor naqueles olhos negros.
Positivamente, Lilico era muito especial! Aquela cara morena não pertencia a um
garotinho tão novo. Sentiu os olhos
arderem ao recolher as balas que Robertinho lhe estendia.
-
Lilico... eu vou conseguir mais balas pra você. Prometo!!
Ele
sorriu, depois foi se afastando devagarinho:
-
Sei disso, Mano. Você é bom. Agora leve as balas pra mãe e não diga que eu
fiquei sem nenhuma. Não fale nada!
“As
lágrimas banharam não apenas meu rosto, mas inundaram minha alma.”
Lilico olhou-me, mais uma vez, sereno:
-
Um dia, Mano, haverá muitas balas. Pra todos.
Poema selecionado Revista Bsrbante abril 2024