Maninho entrou em casa tão
rápido que acabou derrubando a cadeira colocada por vovó bem no meio do
corredor. Vovó era assim: adorava colocar coisas espalhadas pela casa. E que
coisas bizarras eram, na maior parte das vezes! Mas, ultimamente, vovó tinha se
superado: mexia como os móveis da casa! Um dia, uma mesa perto do banheiro;
outra vez, um sofá em pleno jardim! Mamãe ficava furiosa, porém era dotada de
uma alma doce e repleta de nuanças calmantes. Diferente de papai, que só faltava
arrancar os últimos fios de cabelo quando via as estripulias que vovó
inventava. “Coisa de gente louca, mamãe endoideceu”- dizia, lamentando, à
família. Mamãe sorria e, com a ajuda de Maninho, colocava tudo novamente no
devido lugar...
Lembrava de uma ocasião em que papai
quase desfalecera com as atitudes de vovó. Isso quase sempre acontecia, pois,
no fundo, papai não compreendia bem a velhinha. Recordava: era domingo, a
família reunida: tios, primos, o churrasco pronto para ser assado... O cachorro
latindo no fundo do quintal, os vizinhos com os olhos arregalados... Família é
assim mesmo quando se junta: é um Deus nos acuda! No meio daquela algazarra
toda, esqueceram da vovó! Foi Maninho quem lembrou dela:
- Papai,
cadê a vovó?
O pai, pronto para servir o refrigerante aos primos e ao
tio Mário, não ligou muito:
- Sei lá,
Maninho, deve estar no quarto, ora...
- Chame
ela, Maninho! Quero dar um abraço na mamãe! Estou com saudades daquela velhota excêntrica...
- disse tio Mário, pegando o copo que papai lhe estendia.
Maninho
não sabia direito o que significava excêntrica, mas correu até o quarto da
vovó. Assustou-se ao notar o quarto vazio, sem sinal dela. Ué, onde estaria a
vovó?
Procuraram
por toda a casa, o jardim... tios, primos, todos em polvorosa! Nada... até que
o latido insistente e agoniado do Bolota
assustou a família. A irmãzinha, meio bamba das pernas, correu, afobada:
- Maninho,
ligeiro! É o Bolota que tá latindo furioso. Corra, Maninho!!
O restante
do pessoal seguiu a irmãzinha... Lá estava o canil. Bolota latia como um
possesso! O canil era espaçoso, havia lugar para mais um cachorro, mas Bolota
era, naquele momento, seu único habitante. Quer dizer, neste instante, havia
mais ocupantes lá dentro. Maninho quase não acreditou no que viu! Os tios,
primos romperam em gargalhadas! Papai e mamãe olharam, aturdidos e sem fala...
-
Meu Deus, vovó! O que a senhora está fazendo aí dentro, sentada nesta cadeira
de balanço? – Maninho chegou perto do canil, não sabia se ria... Não entendia
direito o que vovó queria provar, desta vez.
A velhinha olhou-os e sorriu de forma
misteriosa. Depois observou tio Mário, a esposa e os pequenos. Simplesmente
ignorou papai, mamãe, a irmãzinha. Foram breves minutos, depois se encolheu no
seu mutismo. Bolota é que não despregava os olhos de vovó e continuava a latir
como um doido. Queria expulsar vovó de seu lar o quanto antes! Porém, ela nem
ligava. Embalava-se suavemente em sua cadeira de balanço... pra lá... pra cá..
pra lá... pra cá...
Papai
perdeu a paciência e segurou a cadeira com força. Vovó olhou-o assombrada.
Maninho tentou acalmar papai e, depois, falou para a velhinha:
- Vovó,
por favor, olhe pra mim! O que a senhora está fazendo no canil do Bolota?
Venha, vamos sair daqui!
Vovó
sorriu novamente, fascinada pelas palavras de Maninho. Mas foi para papai que
ela se dirigiu:
- Pedro
Afonso, finalmente, parece que está notando que a vida não se resume a papel e
caneta. Precisa enxergar o mundo real em certas ocasiões... Preciso puxar-lhe
as orelhas mais seguido!
Papai
abriu a boca para dizer algo, de repente, porém, sacudiu a cabeça e,
desnorteado, afastou-se do canil, levando mamãe em seu encalço.
Tio Mário
e tia Amélia ouviam a vovó, estarrecidos. O tio suspirou, alto:
- Vá,
mamãe! Já está na hora de a senhora deixar essas bobagens de lado. Mãe, a
senhora tem 89 anos! Não é uma criança e nem pode agir como uma menininha tola!
Vovó
levantou o braço e pediu silêncio:
- Meu filho, segure esta língua! Você também é
outro que precisa afastar o véu dos olhos. Vive como um caramujo, fechado em
seu mundo hipócrita. Aliás, devo fazer uma visitinha a meus netos e à Amelinha.
Qualquer dia. Até pensei em mudar certas coisas naquela casa cheirando a mofo!
Que tal... – Mário segurou a mão da esposa, puxou as crianças e quase saiu
correndo, enquanto dizia:
- Deus me
livre, mamãe! Fique longe da minha casa. As crianças e a Amélia estão muito bem
sem as suas visitas... Vamos, crianças, vamos depressa... Aliás, vamos é
embora, o almoço fica para outro dia... Venha logo, Amélia!!
E
praticamente fugiu, levando os filhos e a esposa em desabalada corrida pelo
pátio.
Vovó riu
mansamente, com os olhos postos na família que ia longe...
- Coitado
do meu filho! Pobre dos meus netos! Que mundo cinza eles todos vivem! Tenho dó
das crianças, ficarão iguaizinhas ao pai. Levantou-se, repentinamente, enquanto
olhava Bolota com os olhos brilhando:
- Bolota,
hoje à noite volto, farei companhia a você. Quero ver as estrelas...
Maninho e a irmãzinha sufocaram o riso: vovó enxergava
coisas que ninguém via!
Conto selecionado para a Revista Barbante - 2020