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terça-feira, 22 de junho de 2021

Sapatinhos Azuis - meu 6º livro infantojuvenil

 

 

 

 

 

 

 

 


 



 


            Não eram os sapatinhos de Cinderela, daquela Cinderela dos contos de fadas, não. Estes me foram prometidos quando nenê. Não por uma fada-madrinha, mas sim por uma  vizinha prá lá de esquisita, moradora da casa da esquina. Moradora era força de expressão. Na verdade, a mulher não tinha paradeiro fixo, vivia sozinha e andava sempre caminhando pelas ruas, esquisita como ela só.

            Mamãe fechava o rosto assim que ela se aproximava de nossa casa e ficava de sobreaviso, caso a vizinha tomasse alguma atitude violenta. Porém, a mulher parecia pacífica. Trazia, constantemente, nas mãos magras e murchas, um punhado de flores e  distribuía-as pela vizinhança. Dessa forma, acabou mesmo conquistando o coração resistente de mamãe. Isso tudo aconteceu antes do meu nascimento. Por esses dias, a vizinha criou raízes em sua residência e, muito raramente, saía a oferecer flores pelas casas do bairro. Aliás, eram flores azuis, o que provocava a desconfiança dos vizinhos de que ela tingia as pétalas com corantes azuis.

            O fato estranho, segundo conta mamãe, deu-se no dia em que nasci. Com dores absurdas e já carregando a maleta com minhas roupinhas, mamãe levou um tremendo susto ao deparar com a vizinha no vão da porta, espiando-a. O coração não ajudou em nada e ela, ansiosa e agitada, começou a gritar por papai. Todavia, a mulher não se intimidou. Firme, encarou mamãe. Em seguida, num gesto inesperado, estendeu-lhe uma flor de pétalas azuis:

            - Coma... vai ajudar no parto.

            Minha mãe revirou os olhos, achando que a outra havia mesmo enlouquecido. Comer pétalas?! Se o momento não fosse tão trágico, ela teria gargalhado... Onde já se viu tamanha asneira? E o papai que não chegava...

            A vizinha sorriu, enigmática, e tornou a dizer:

            - Coma... as dores irão passar logo. – depois dessas palavras finitas, sumiu. Mamãe ficou ali, grávida e dolorida, a segurar a flor entre os dedos trêmulos. O que ela fez, então? Abriu a boca e tornou a gritar por papai. Gritou... gritou... gritou... e, de forma brusca e surpreendente, engoliu as pétalas da flor de uma única vez! Glup!! Não sobrou nada! E... a dor passou, como por encantamento... E eu nasci: gorducha, rosada, risonha ... e com gostinho de pétalas azuis.

            Por incrível que pareça, até hoje, quando fala do que ocorreu, mamãe não sabe dizer o sabor dessas pétalas. Seriam mesmo medicinais? Mas, o que importa? Eu crescia saudável, pronta para dar os primeiros passinhos. Só ao completar dez meses, é que a vizinha tornou a aparecer em nossa casa. Chegou de repente, no momento em que mamãe me embalava no berço, junto ao jardim florido. Veio de mansinho, pé por pé e, como sempre, pregou o maior susto na mãezinha. Então, olhando para mim, falou com sua voz de brisa:

            - Ninita, vou dar a você um par de sapatinhos azuis. Sim, de sapatinhos azuis!

            Mamãe não conteve o riso ao observar aquela figura exótica debruçada sobre o meu berço enfeitado de rendinhas:

            - Sapatinhos azuis? Ninita? Esse não é o nome de minha filha! Ela se chama Rita.

            A outra apenas encolheu os ombros:

            - Ninita será seu apelido. Ficará gravado em seu destino. E ela gostará do meu presente. Será sua proteção contra as maldades do mundo.

             Mamãe continuou a rir, incrédula:

            - Por que minha filhinha iria precisar de sapatinhos azuis? Ela tem tantos pares novos e bonitos! Diga-me: a senhora é louca?

            Sei, mamãe pegou pesado dessa vez. Porém, não houve a mínima reação no semblante da mulher ao ouvir a pergunta. Permaneceu quieta, a olhar-me dormindo no berço; um bebê alheio ao que estava se passando no mundo exterior. Mas o olhar da mulher era tão doce, tão cheio de afagos... Mamãe sentiu-se arrependida do que havia falado. Bem, talvez a vizinha fosse mesmo uma boa pessoa!

             Vários  minutos se passaram... por fim, a vizinha levantou os olhos. Fixou-os, em silêncio,  no rosto jovem  de minha mãe. Por muito, muito tempo...

            Até que falou:

            - Porque ela é Ninita e terá os sapatinhos azuis para protegê-la sempre! – sorriu com bondade. Ia retirar-se, mas pareceu lembrar de algo:

            - Ah, sim, por toda vida. Eles aumentarão, conforme ela crescer. Outra coisa: caso eu não esteja mais aqui, os sapatinhos poderão ser encontrados no jardim, junto às flores azuis...

             E partiu, deixando mamãe confusa e perplexa.

 

 

 

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             Os dias, os meses vieram sem pedir licença e eu continuei a crescer: alegre, rechonchuda e sapeca... Minha mamãe esqueceu da vizinha. E ninguém mais recebeu visitas inusitadas e não houve flores ofertadas de lar em lar. Mamãe não contara à papai sobre os sapatinhos azuis. Acreditara ser uma grande idiotice da pobre mulher.

            Próximo à data do meu aniversário de dois aninhos, em uma manhã de céu azul, papai e mamãe receberam uma visita: era Seu Antunes, o vizinho falante da rua. Trazia o jornal local embaixo do braço. Mostrou a meus pais certa notícia. Depois de conversarem baixinho por algum tempo, Seu Antunes despediu-se. Papai trocou um olhar profundo com mamãe e saiu da sala,deixando-me aos cuidados dela. Esta, pensativa, colocou-me em seu colo e alisou meus cabelos com carinho:

            - Quem diria, filhinha, aquela mulher estranha morreu. Ainda me lembro dela vagando pelas ruas...  recordo de suas flores de pétalas azuis... Agora, ela se foi...

            Olhei para minha mãe, sem compreender suas palavras. Apenas sentia que ela estava triste e queria confortá-la com meus braços miudinhos...

            Na tarde desse mesmo dia, uma placa bem grande e vistosa, quase na calçada, indicava que a vizinha não mais voltaria de seus passeios encantados. O dizer “vende-se” prometia isso.

            Mamãe levou-me para o jardim. Meus pés de criança saborearam o prazer de pisotear na grama verdinha e espiar o voo gracioso dos passarinhos. Fiquei por longos  minutos  nesse entretenimento, sem lembrar de mamãe. Uma borboleta amarela pousando pertinho de algumas flores azuis chamou minha atenção. Fui até lá espiar, curiosa. Mas não era a borboleta que estava descansando entre as flores. Arregalei os olhinhos e gritei com a força de meus quase dois anos:

            - Mama! Mama!

            Mamãe surgiu correndo e parou bem ao meu lado. Apontei com o dedo gorducho. Ouvi a respiração forte dela, depois..

            - Deus, de onde surgiram estas flores azuis?!

            Continuei a mostrar, muito alegre, já disposta a bater palminhas:

            - Mama, mama! Ali!

             Ela olhou na direção que eu apontava. Encostado junto aos caules elegantes das flores azuis havia um par de sapatinhos... azuis!

            A mãezinha segurou minha mão com tanta força que senti dor...

            - Ninita... – mamãe nunca me chamara assim antes! Ninita... ela cumpriu a promessa! Depois de tanto tempo! Os sapatinhos azuis... Meu Deus, ela cumpriu a promessa...

 

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