Pesquisar este blog

segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

Os olhos da vovó - conto premiado com Menção Honrosa

 

 





      Maninho entrou em casa tão rápido que acabou derrubando a cadeira colocada por vovó bem no meio do corredor. Vovó era assim: adorava colocar coisas espalhadas pela casa. E que coisas bizarras eram, na maior parte das vezes! Mas, ultimamente, vovó tinha se superado: mexia como os móveis da casa! Um dia, uma mesa perto do banheiro; outra vez, um sofá em pleno jardim! Mamãe ficava furiosa, porém era dotada de uma alma doce e repleta de nuanças calmantes. Diferente de papai, que só faltava arrancar os últimos fios de cabelo quando via as estripulias que vovó inventava. “Coisa de gente louca, mamãe endoideceu”- dizia, lamentando, à família. Mamãe sorria e, com a ajuda de Maninho, colocava tudo novamente no devido lugar...

                        Lembrava de uma ocasião em que papai quase desfalecera com as atitudes de vovó. Isso quase sempre acontecia, pois, no fundo, papai não compreendia bem a velhinha. Recordava: era domingo, a família reunida: tios, primos, o churrasco pronto para ser assado... O cachorro latindo no fundo do quintal, os vizinhos com os olhos arregalados... Família é assim mesmo quando se junta: é um Deus nos acuda! No meio daquela algazarra toda, esqueceram da vovó! Foi Maninho quem lembrou dela:

            - Papai, cadê a vovó?

O pai, pronto para servir o refrigerante aos primos e ao tio Mário, não ligou muito:

            - Sei lá, Maninho, deve estar no quarto, ora...

            - Chame ela, Maninho! Quero dar um abraço na mamãe! Estou com saudades daquela velhota excêntrica... - disse tio Mário, pegando o copo que papai lhe estendia.

            Maninho não sabia direito o que significava excêntrica, mas correu até o quarto da vovó. Assustou-se ao notar o quarto vazio, sem sinal dela. Ué, onde estaria a vovó?

            Procuraram por toda a casa, o jardim... tios, primos, todos em polvorosa! Nada... até que o latido insistente  e agoniado do Bolota assustou a família. A irmãzinha, meio bamba das pernas, correu, afobada:

            - Maninho, ligeiro! É o Bolota que tá latindo furioso. Corra, Maninho!!

            O restante do pessoal seguiu a irmãzinha... Lá estava o canil. Bolota latia como um possesso! O canil era espaçoso, havia lugar para mais um cachorro, mas Bolota era, naquele momento, seu único habitante. Quer dizer, neste instante, havia mais ocupantes lá dentro. Maninho quase não acreditou no que viu! Os tios, primos romperam em gargalhadas! Papai e mamãe olharam, aturdidos e sem fala...

                        - Meu Deus, vovó! O que a senhora está fazendo aí dentro, sentada nesta cadeira de balanço? – Maninho chegou perto do canil, não sabia se ria... Não entendia direito o que vovó queria provar, desta vez.

             A velhinha olhou-os e sorriu de forma misteriosa. Depois observou tio Mário, a esposa e os pequenos. Simplesmente ignorou papai, mamãe, a irmãzinha. Foram breves minutos, depois se encolheu no seu mutismo. Bolota é que não despregava os olhos de vovó e continuava a latir como um doido. Queria expulsar vovó de seu lar o quanto antes! Porém, ela nem ligava. Embalava-se suavemente em sua cadeira de balanço... pra lá... pra cá.. pra lá... pra cá...

            Papai perdeu a paciência e segurou a cadeira com força. Vovó olhou-o assombrada. Maninho tentou acalmar papai e, depois, falou para a velhinha:

            - Vovó, por favor, olhe pra mim! O que a senhora está fazendo no canil do Bolota? Venha, vamos sair daqui!

            Vovó sorriu novamente, fascinada pelas palavras de Maninho. Mas foi para papai que ela se dirigiu:

            - Pedro Afonso, finalmente, parece que está notando que a vida não se resume a papel e caneta. Precisa enxergar o mundo real em certas ocasiões... Preciso puxar-lhe as orelhas mais seguido!

            Papai abriu a boca para dizer algo, de repente, porém, sacudiu a cabeça e, desnorteado, afastou-se do canil, levando mamãe em seu encalço.

            Tio Mário e tia Amélia ouviam a vovó, estarrecidos. O tio suspirou, alto:

            - Vá, mamãe! Já está na hora de a senhora deixar essas bobagens de lado. Mãe, a senhora tem 89 anos! Não é uma criança e nem pode agir como uma menininha tola!

            Vovó levantou o braço e pediu silêncio:

             - Meu filho, segure esta língua! Você também é outro que precisa afastar o véu dos olhos. Vive como um caramujo, fechado em seu mundo hipócrita. Aliás, devo fazer uma visitinha a meus netos e à Amelinha. Qualquer dia. Até pensei em mudar certas coisas naquela casa cheirando a mofo! Que tal... – Mário segurou a mão da esposa, puxou as crianças e quase saiu correndo, enquanto dizia:

            - Deus me livre, mamãe! Fique longe da minha casa. As crianças e a Amélia estão muito bem sem as suas visitas... Vamos, crianças, vamos depressa... Aliás, vamos é embora, o almoço fica para outro dia... Venha logo, Amélia!!

            E praticamente fugiu, levando os filhos e a esposa em desabalada corrida pelo pátio.

            Vovó riu mansamente, com os olhos postos na família que ia longe...

            - Coitado do meu filho! Pobre dos meus netos! Que mundo cinza eles todos vivem! Tenho dó das crianças, ficarão iguaizinhas ao pai. Levantou-se, repentinamente, enquanto olhava Bolota com os olhos brilhando:

            - Bolota, hoje à noite volto, farei companhia a você. Quero ver as estrelas...

Maninho e a irmãzinha sufocaram o riso: vovó enxergava coisas que ninguém via!


Conto selecionado para a Revista Barbante - 2020




           

 

Meu poema em destaque

Poema selecionado "Brumas"

  Poema selecionado Revista Bsrbante abril 2024