Não eram os sapatinhos de Cinderela,
daquela Cinderela dos contos de fadas, não. Estes me foram prometidos quando
nenê. Não por uma fada-madrinha, mas sim por uma vizinha prá lá de esquisita, moradora da casa
da esquina. Moradora era força de expressão. Na verdade, a mulher não tinha
paradeiro fixo, vivia sozinha e andava sempre caminhando pelas ruas, esquisita
como ela só.
Mamãe fechava o rosto assim que ela
se aproximava de nossa casa e ficava de sobreaviso, caso a vizinha tomasse
alguma atitude violenta. Porém, a mulher parecia pacífica. Trazia,
constantemente, nas mãos magras e murchas, um punhado de flores e distribuía-as pela vizinhança. Dessa forma,
acabou mesmo conquistando o coração resistente de mamãe. Isso tudo aconteceu
antes do meu nascimento. Por esses dias, a vizinha criou raízes em sua
residência e, muito raramente, saía a oferecer flores pelas casas do bairro.
Aliás, eram flores azuis, o que provocava a desconfiança dos vizinhos de que
ela tingia as pétalas com corantes azuis.
O fato estranho, segundo conta
mamãe, deu-se no dia em que nasci. Com dores absurdas e já carregando a maleta
com minhas roupinhas, mamãe levou um tremendo susto ao deparar com a vizinha no
vão da porta, espiando-a. O coração não ajudou em nada e ela, ansiosa e
agitada, começou a gritar por papai. Todavia, a mulher não se intimidou. Firme,
encarou mamãe. Em seguida, num gesto inesperado, estendeu-lhe uma flor de
pétalas azuis:
- Coma... vai ajudar no parto.
Minha mãe revirou os olhos, achando
que a outra havia mesmo enlouquecido. Comer pétalas?! Se o momento não fosse
tão trágico, ela teria gargalhado... Onde já se viu tamanha asneira? E o papai
que não chegava...
A vizinha sorriu, enigmática, e
tornou a dizer:
- Coma... as dores irão passar logo.
– depois dessas palavras finitas, sumiu. Mamãe ficou ali, grávida e dolorida, a
segurar a flor entre os dedos trêmulos. O que ela fez, então? Abriu a boca e
tornou a gritar por papai. Gritou... gritou... gritou... e, de forma brusca e
surpreendente, engoliu as pétalas da flor de uma única vez! Glup!! Não sobrou
nada! E... a dor passou, como por encantamento... E eu nasci: gorducha, rosada,
risonha ... e com gostinho de pétalas azuis.
Por
incrível que pareça, até hoje, quando fala do que ocorreu, mamãe não sabe dizer
o sabor dessas pétalas. Seriam mesmo medicinais? Mas, o que importa? Eu crescia
saudável, pronta para dar os primeiros passinhos. Só ao completar dez meses, é
que a vizinha tornou a aparecer em nossa casa. Chegou de repente, no momento em
que mamãe me embalava no berço, junto ao jardim florido. Veio de mansinho, pé
por pé e, como sempre, pregou o maior susto na mãezinha. Então, olhando para
mim, falou com sua voz de brisa:
-
Ninita, vou dar a você um par de sapatinhos azuis. Sim, de sapatinhos azuis!
Mamãe
não conteve o riso ao observar aquela figura exótica debruçada sobre o meu
berço enfeitado de rendinhas:
-
Sapatinhos azuis? Ninita? Esse não é o nome de minha filha! Ela se chama Rita.
A
outra apenas encolheu os ombros:
-
Ninita será seu apelido. Ficará gravado em seu destino. E ela gostará do meu
presente. Será sua proteção contra as maldades do mundo.
Mamãe continuou a rir, incrédula:
-
Por que minha filhinha iria precisar de sapatinhos azuis? Ela tem tantos pares
novos e bonitos! Diga-me: a senhora é louca?
Sei,
mamãe pegou pesado dessa vez. Porém, não houve a mínima reação no semblante da
mulher ao ouvir a pergunta. Permaneceu quieta, a olhar-me dormindo no berço; um
bebê alheio ao que estava se passando no mundo exterior. Mas o olhar da mulher
era tão doce, tão cheio de afagos... Mamãe sentiu-se arrependida do que havia
falado. Bem, talvez a vizinha fosse mesmo uma boa pessoa!
Vários
minutos se passaram... por fim, a vizinha levantou os olhos. Fixou-os,
em silêncio, no rosto jovem de minha mãe. Por muito, muito tempo...
Até
que falou:
-
Porque ela é Ninita e terá os sapatinhos azuis para protegê-la sempre! – sorriu
com bondade. Ia retirar-se, mas pareceu lembrar de algo:
-
Ah, sim, por toda vida. Eles aumentarão, conforme ela crescer. Outra coisa:
caso eu não esteja mais aqui, os sapatinhos poderão ser encontrados no jardim,
junto às flores azuis...
E partiu, deixando mamãe confusa e perplexa.
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Os dias, os meses vieram sem pedir licença e
eu continuei a crescer: alegre, rechonchuda e sapeca... Minha mamãe esqueceu da
vizinha. E ninguém mais recebeu visitas inusitadas e não houve flores ofertadas
de lar em lar. Mamãe não contara à papai sobre os sapatinhos azuis. Acreditara
ser uma grande idiotice da pobre mulher.
Próximo à data do meu aniversário de
dois aninhos, em uma manhã de céu azul, papai e mamãe receberam uma visita: era
Seu Antunes, o vizinho falante da rua. Trazia o jornal local embaixo do braço.
Mostrou a meus pais certa notícia. Depois de conversarem baixinho por algum
tempo, Seu Antunes despediu-se. Papai trocou um olhar profundo com mamãe e saiu
da sala,deixando-me aos cuidados dela. Esta, pensativa, colocou-me em seu colo
e alisou meus cabelos com carinho:
- Quem diria, filhinha, aquela
mulher estranha morreu. Ainda me lembro dela vagando pelas ruas... recordo de suas flores de pétalas azuis...
Agora, ela se foi...
Olhei para minha mãe, sem
compreender suas palavras. Apenas sentia que ela estava triste e queria
confortá-la com meus braços miudinhos...
Na tarde desse mesmo dia, uma placa
bem grande e vistosa, quase na calçada, indicava que a vizinha não mais
voltaria de seus passeios encantados. O dizer “vende-se” prometia isso.
Mamãe levou-me para o jardim. Meus
pés de criança saborearam o prazer de pisotear na grama verdinha e espiar o voo
gracioso dos passarinhos. Fiquei por longos
minutos nesse entretenimento, sem
lembrar de mamãe. Uma borboleta amarela pousando pertinho de algumas flores
azuis chamou minha atenção. Fui até lá espiar, curiosa. Mas não era a borboleta
que estava descansando entre as flores. Arregalei os olhinhos e gritei com a
força de meus quase dois anos:
- Mama! Mama!
Mamãe surgiu correndo e parou bem ao
meu lado. Apontei com o dedo gorducho. Ouvi a respiração forte dela, depois..
- Deus, de onde surgiram estas
flores azuis?!
Continuei a mostrar, muito alegre,
já disposta a bater palminhas:
- Mama, mama! Ali!
Ela olhou na direção que eu apontava.
Encostado junto aos caules elegantes das flores azuis havia um par de
sapatinhos... azuis!
A mãezinha segurou minha mão com
tanta força que senti dor...
- Ninita... – mamãe nunca me chamara
assim antes! Ninita... ela cumpriu a promessa! Depois de tanto tempo! Os
sapatinhos azuis... Meu Deus, ela cumpriu a promessa...
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