Passagem - conto

 



“Janelas se abrem, asas misteriosas do infinito... descortinam dias e horizontes, fontes e luzes... São matizes. São passagens. Travessias. Janelas d’alma.”

 


            Amanhecera, e meus olhos – janelas aladas – doeram com a claridade que teimava em entrar através das cortinas. O dia, lá fora, coloria-se de tons laranjas, enquanto o sol, convidado elegante, brindava-me com sorrisos quentes.

            Levantei-me, quase em sonolências de névoa. Parecia mesmo que eu não pertencia ao mundo real. Eu era apenas o reflexo de mim mesma.

            Afastei com lentidão a cortina cinzenta e desbotada e espiei o amanhecer morno e luzidio. O grito dos ambulantes madrugadores, o ruido incessante dos automóveis explodiam em perfumes ásperos e cortantes. A manhã pariu em fios de vida. Pontinhos de prata pincelaram minha alma e recordei os rostos queridos. Saudades doces. Sonhos, risos, abraços invadiram o quarto... Valsas nostálgicas de dias sem fim...

            Tornei a observar o mundo exterior. Mais por curiosidade que por interesse.

            Alguém, em fuga de tristezas, vestes opacas, cruzou a rua em ritmo veloz e desespero amargo...

            E, de repente, quebrando a pintura melancólica do nascente dia, o estrondo pesado e duro do choque inevitável. Em seguida, o silêncio encharcou a paisagem esverdeada da manhã.

            Puxei com violência as cortinas. O amanhecer, outrora alaranjado, vestiu-se de breu. Recolhi-me à minha paz interior.

            Arrastei-me até o espelho e ele me devolveu um rosto com nuanças de bruma.

             Os olhos se transformaram em janelas... por onde meu ser escapuliu.

Nenhum comentário:

Meu poema em destaque

Sonho - poema selecionado

Revista D'Arte - poema selecionado/2024